Os novos Organismos Geneticamente Modificados e a guerra à Agricultura Biológica na União Europeia

Os novos Organismos Geneticamente Modificados

A proposta de (des)regulamentação dos Organismos Geneticamente Modificados na União Europeia apresentada pela Comissão Europeia (CE) em julho 2023 e a recente proposta da relatora do Parlamento Europeu (PE) em fazer aprovar os novos OGM/NTG na agricultura biológica (1), é um ataque a todo o setor da produção, distribuição e consumo de alimentos deste modo de produção agrícola.

A IFOAM-Organics Europe publicou a 19/10/2023, poucos dias depois de ter tido conhecimento do Draft Report do PE, um comunicado com a posição do setor “bio” representado pelo Grupo europeu da IFOAM, sobre a proposta do PE (2), de que destacamos o seguinte excerto (texto completo do comunicado no link abaixo):

“O movimento europeu de agricultura biológica reafirma a sua posição de que o processo de produção biológica deve permanecer livre de Organismos Geneticamente Modificados (OGM) no futuro, incluindo os OGM derivados de Novas Técnicas Genómicas. Os criadores, agricultores, transformadores, certificadores, comerciantes e retalhistas em agricultura biológica exigem a liberdade de escolha para permanecerem livres de OGM. Para o efeito, o princípio da rotulagem e da rastreabilidade consagrado na legislação atual, que permite a identificação dos OGM ao longo de toda a cadeia de abastecimento, deve ser mantido e aplicado a todos os OGM incluindo os de NTGs.”

A AGRO-SANUS está solidária com esta posição e apela aos agricultores e às restantes pessoas envolvidas no setor da agricultura biológica, incluindo os consumidores destes alimentos, para que atuem na defesa de todo o setor e na sua própria defesa.

A guerra contra a agricultura biológica lançada pela indústria agroquímica, e agora também pela deputada do PE relatora para este assunto, está instalada em toda a União Europeia e é preciso resistir.

O movimento da agricultura biológica já tem muita história e os seus pioneiros tiveram o cuidado de estabelecer princípios e regras para que não houvesse dúvidas do que se tratava.

O primeiro referencial técnico foi criado em 1967 pela ONG inglesa Soil Association a primeira associação de agricultura biológica na Europa (fundada em 1946).

Seguiu-se em 1972 em França o Caderno de Encargos da ONG Nature et Progrès que, em larga medida, se inspirou no primeiro. Isso levou a que o Governo francês publicasse a primeira legislação nacional relativa à agricultura biológica.

Em Portugal, na década de 80 a associação Agrobio (fundada em 1985) publicou o “Caderno de Normas” para a agricultura biológica, numa adaptação do documento francês da Nature et Progrès e iniciou uma certificação ainda antes de existir legislação europeia.

A Federação mundial IFOAM (agora IFOAM-Organics International, com uma organização paralela para a Europa – IFOAM Organics Europe), foi fundada em 1972 pelas principais associações que existiam na altura na Europa e no Mundo, como as duas já referidas, e publicou os princípios e as normas de produção para a “Organic Farming” (Agricultura Biológica em português de Portugal e em vários outros países como França, Agricultura Orgânica em português do Brasil, Agricultura Ecológica em alguns países europeus como Espanha).

Bastante mais tarde, em 2005 e depois de uma discussão alargada às centenas de associações e empresas federadas na IFOAM, foram aprovados os 4 princípios em que a agricultura biológica se deve fundamentar (3).

A regulamentação oficial europeia para este modo de produção começou em 1991 (produção vegetal) e teve uma grande evolução, mas mantendo sempre o espírito inicial.

Passou a incluir também outras produções e produtos – produção animal, apicultura, aquicultura, produção de algas marinhas, colheita de plantas e frutos silvestres, produtos florestais como a cortiça e o pinhão, e produção de vinho.

A legislação atual é o Regulamento EU 2018/848 do Parlamento e do Conselho, e respetivos regulamentos de execução, em vigor e aplicação em todos os Estados-membro desde 1 de janeiro de 2022.

Tendo em conta todos os princípios e práticas que estão na base desta agricultura, bem como a legislação comunitária em vigor, nunca foram permitidos organismos geneticamente modificados (OGM) nem os herbicidas a eles ligados, nem outros pesticidas ou adubos químicos de síntese, pois a sua eventual autorização colocaria em causa esses princípios e a confiança dos consumidores.

Agora, com a segunda geração de OGM/NTG (variedades de plantas ou outros organismos, obtidos por edição genética de genes da mesma espécie ou de espécies próximas, mudando a sua posição na cadeia de DNA, a indústria que os produz e a própria Comissão Europeia (CE) já não os designa por OGM, mas sim por organismos obtidos por Novas Técnicas Genómicas (NTG).

A CE apresentou em julho de 2023 uma proposta de regulamentação criando uma nova categoria para estes novos organismos NTG em que as exigências de testes toxicológicos e de identificação do produto desde a semente até ao consumidor, deixam de existir, exceto na rotulagem da semente.

Nesta proposta da CE os novos OGM/NTG ficariam de fora da agricultura biológica, embora o uso generalizado deste tipo de culturas sem rastreabilidade faça aumentar o risco de poluição genética por transporte do pólen pelos insetos e pelo vento.

Como se isso não bastasse, a deputada do Parlamento Europeu relatora desta legislação ao nível do PE, propõe agora uma ausência total de rotulagem (incluindo na semente) e que os novos OGM sejam autorizados em agricultura biológica!?

Isto é um golpe terrível nos princípios e práticas da agricultura biológica e na credibilidade da mesma junto dos consumidores, que o setor bio em Portugal e na União Europeia não pode permitir!

Os Organismos Geneticamente Modificados nunca devem ser aprovados para a agricultura biológica e não lhe fazem falta, nomeadamente pelas seguintes razões:

  • A utilização de OGM na agricultura biológica vai contra os seus princípios e é um fator de descrédito em toda a cadeia e em particular nos consumidores;
  • As variedades OGM não são mais produtivas;
  • A maior parte das variedades OGM comercializadas até agora não permitiram reduzir os pesticidas, aumentando, e muito, o uso do glifosato e, mais recentemente nos Estados Unidos, do herbicida dicamba (com o surgimento de espécies de ervas infestantes resistentes ao glifosato);
  • As sementes OGM são mais caras, não por serem melhores, mas por serem patenteadas;
  • As plantas OGM podem provocar contaminação genética das culturas biológicas, principalmente no caso de polinização entomófila (pelos insetos polinizadores);
  • As alterações no DNA (com genes estranhos ou com a mudança de posição dos genes da espécie) podem provocar alterações imprevisíveis e gravosas para o ambiente e para a saúde;
  • O crescimento do setor, de forma continuada e resiliente, ficará em causa com esta alteração.

Ferreira do Zêzere, 06/11/2023
Jorge Ferreira
(Engº Agrónomo / Organic Farming Consultant)
Agro-sanus Lda / www.agrosanus.pt
(IFOAM Organics International Full Member)

Notas à carta:

(1) Draft Report do Comité do Ambiente, Saúde pública e Segurança alimentar, com a proposta para a regulamentação do Parlamento e do Conselho sobre plantas obtidas por certas novas técnicas genómicas e alimentos delas derivados para alimentação humana ou animal (16/10/2023): draft report on New Genetic Techniques (NGTs).

(2) A IFOAM-Organics Europe publicou um comunicado com a posição do setor “bio” representado pela IFOAM, sobre a proposta do PE (19/10/2023): https://www.organicseurope.bio/news/european-parliament-should-uphold-ban-for-all-ngts-in-organic-in-rapporteurs-report/

(3) A Assembleia Geral (AG) da IFOAM, reunida em Adelaide, Austrália, em setembro de 2005, aprovou a revisão dos “Princípios da Agricultura Biológica”, revisão que resultou de um intenso processo participativo que decorreu durante os dois anos que precederam a AG.

Esses princípios servem para inspirar o movimento na sua total diversidade e para articular o significado da Agricultura Biológica à escala mundial.

Com o crescimento continuado do setor e os desafios e as oportunidades que resultam de tal crescimento, a AG da IFOAM chegou à conclusão de que os valores básicos, os princípios fundamentais para a Agricultura Biológica carecem de maior reflexão e discussão.

Os princípios aprovados são quatro, sobre os quais a Agricultura Biológica a nível mundial deve ser baseada:

  • o princípio da Saúde;
  • o princípio da Ecologia;
  • o princípio da Integridade;
  • o princípio de Precaução.
    (…)

O Princípio da Ecologia

A Agricultura Biológica deve ser baseada em sistemas e ciclos ecológicos vivos, trabalhar com eles, respeitá-los, e ajudar à sua sustentabilidade. Este princípio coloca a agricultura biológica dentro dos sistemas ecológicos vivos.

Sublinha que a produção deve ser baseada em processos ecológicos e na reciclagem. A nutrição e o bem-estar são conseguidos através da ecologia do ambiente de produção específico.

Por exemplo, no caso das culturas, este ambiente é o solo vivo (e não os substratos mais ou menos inertes da hidroponia); para os animais é o ecossistema da exploração agrícola; para peixes e outros organismos marinhos, é o ambiente aquático.

A produção biológica, a pastorícia e os sistemas de colheitas silvestres, devem ajustar-se aos ciclos e aos balanços ecológicos da natureza. Estes ciclos são universais, mas a sua utilização é específica para cada local.

A produção biológica deve ser adaptada às condições locais, à sua ecologia, cultura e escala. Os fatores de produção externos ou “inputs”, devem ser reduzidos pela reutilização, reciclagem e gestão eficiente de materiais e energia, de modo a manter e aumentar a qualidade ambiental e a conservação dos recursos naturais.

A agricultura biológica deve alcançar um equilíbrio ecológico através do planeamento de sistemas de produção agrícola, do estabelecimento de habitates e da manutenção da diversidade genética e agrícola.

Aqueles que produzem, transformam, comercializam ou consomem produtos de agricultura biológica deverão proteger e beneficiar o ambiente, incluindo a paisagem, o clima, os habitates, a biodiversidade, o ar e a água.

(…)

O Princípio de Precaução

A agricultura biológica deve ser gerida com precaução e responsabilidade de modo a proteger a saúde e o bem-estar das atuais e futuras gerações e do ambiente.

A agricultura biológica é um sistema vivo e dinâmico que responde a exigências e condições internas e externas. Os praticantes desta agricultura podem aumentar a eficiência e a produtividade, mas isso não pode pôr em risco a saúde e o bem-estar.

Consequentemente as novas tecnologias precisam ser avaliadas e os métodos já existentes revistos. Dada a incompleta compreensão dos ecossistemas agrícolas, a precaução tem de ser aplicada.

Este princípio diz que a precaução e a responsabilidade são a chave para a gestão, o desenvolvimento e as escolhas tecnológicas na agricultura biológica. A ciência é necessária para assegurar que esta agricultura é saudável, segura e ecologicamente sã.

No entanto, o conhecimento científico por si só não é suficiente. A experiência prática, o saber acumulado e o conhecimento tradicional, oferecem soluções válidas, já testadas pelo tempo.

A agricultura biológica deve prevenir riscos significativos, adotando tecnologias apropriadas e rejeitando as de resultados imprevisíveis, como a engenharia genética.

As decisões devem refletir os valores e necessidades de todos os que possam ser afetados, através de processos transparentes e participados.

One Reply to “Os novos Organismos Geneticamente Modificados e a guerra à Agricultura Biológica na União Europeia”

  1. Eu caí sem querer no seu post. Muito Interessante! Favoritei seu site pra não perder. Continua nessa vibe que tá show! 🙂

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